Por Ana Frazão (*)
A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) representa um grande avanço na prevenção e punição de atos de corrupção, especialmente por viabilizar a responsabilização civil e administrativa de pessoas jurídicas e não apenas de seus administradores e representantes. Com efeito, o fato de agirem por meio de pessoas naturais não faz com que as pessoas jurídicas sejam despidas de vontade ou não tenham condutas próprias que possam ser consideradas reprováveis.
Do ponto de vista jurídico, as pessoas jurídicas detêm vontade própria e podem ser diretamente responsabilizadas por ilicitudes, ainda que dependam de seus administradores para manifestar sua vontade. Na verdade, como os administradores agem em nome e benefício da pessoa jurídica, é até esperado que as sanções praticadas por eles lhe possam ser atribuídas.
Assim, no atual estágio do debate, não podem ser aceitos argumentos de que as pessoas jurídicas não podem praticar ilícitos ou que são sempre meras vítimas de tais atos. Todavia, isso não quer dizer que elas devem responder, no campo punitivo, sempre e incondicionalmente, por todas as ações de seus administradores ou representantes.
É preciso lembrar que a Lei Anticorrupção é uma lei de natureza punitiva. O fato de se tratar de responsabilização administrativa – e não penal em sentido estrito – não afasta a necessidade de se ter fundamentos consistentes para justificar a reprovabilidade das ações imputadas às pessoas jurídicas. Aliás, hoje ganha força a orientação de que o Direito Administrativo Sancionador – do qual a Lei Anticorrupção faz parte – está também sujeito às garantias constitucionais previstas para o Direito Penal, ainda que com as devidas matizações.
Por essas razões, causa estranheza a previsão da lei de que as pessoas jurídicas responderão objetivamente. Responsabilidade objetiva é responsabilidade sem análise de culpa ou de reprovabilidade da conduta, o que é incompatível com qualquer exercício de poder punitivo estatal, cujo pressuposto é o de que alguém agiu de forma contrária ao ordenamento jurídico.
Na verdade, responsabilidade objetiva é técnica de socialização de danos, podendo ser aplicada inclusive diante de atos lícitos. Exatamente por isso, mostrou-se tão adequada nos domínios da responsabilidade civil, cujos parâmetros – como boa-fé objetiva, equidade, garantia, proveito, risco, entre outros – podem ser pertinentes para a reparação de danos, mas não o são para justificar a aplicação de uma pena ou sanção, já que esta apenas pode será aplicada na medida da reprovabilidade de uma conduta.
Além dessa primeira dificuldade inicial, a utilização da responsabilidade objetiva pode comprometer igualmente a eficácia dos tão desejáveis programas de compliance, vistos como excelentes alternativas para a criação de uma cultura empresarial baseada na ética e no cumprimento das normas legais.
Tal tipo de autorregulação é um mecanismo importante para a tutela dos bens jurídicos protegidos pela Lei Anticorrupção, motivo pelo qual há de se pensar seriamente nos incentivos para a adoção dos referidos programas. A previsão de responsabilidade objetiva pode fazer com que os agentes econômicos não tenham os incentivos adequados para implementar, de forma ampla, complexos e custosos programas de organização, supervisão e vigilância, já que os seus esforços, por maiores que sejam, jamais poderão afastar a punição.
É certo que a Lei Anticorrupção prevê, em seu artigo 7º, VIII, que tais programas podem ser utilizados como atenuantes na dosimetria da sanção. Todavia, é discutível que essa mera possibilidade, ainda mais estando sujeita a juízos subjetivos da autoridade julgadora, seja um incentivo suficiente.
Todavia, o tema ora em discussão não diz respeito apenas a incentivos econômicos, mas essencialmente a questões de justiça, na medida em que se indaga qual seria o fundamento para se punir uma pessoa jurídica que tenha comprovado que, por meio de programas de compliance adequados e eficazes, fez tudo o que seria possível para evitar o ilícito.
Nesse sentido, não são poucas as vozes que se levantam para sustentar que o verdadeiro fundamento para se punir uma pessoa jurídica deveria ser o defeito de organização. Não é sem razão que, em diversos países, um bom e efetivo programa de compliance pode ser alegado como defesa da pessoa jurídica contra atos ilícitos praticados por seus administradores ou representantes, a fim de excluir a responsabilização administrativa ou penal da pessoa jurídica.
Tal solução, que obviamente não compromete nem a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica pelo ressarcimento dos danos nem a responsabilização punitiva dos administradores ou pessoas naturais envolvidos na infração, é mais consentânea não apenas com os objetivos da Lei Anticorrupção, como também com os princípios elementares do direito punitivo.
(*) Ana Frazão é advogada, doutora em Direito Comercial e professora de Direito Civil e Comercial na Universidade de Brasília.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 28 de novembro de 2015, 7h30