Por Ricardo de Lima Souza Queiroz
Figurando como uma das principais novidades do Código de Processo Civil de 2015 (prevista no artigo 133 e seguintes do diploma), o incidente de desconsideração da personalidade surge como instrumento vocacionado a assegurar o contraditório prévio aos sócios sobre os quais recaiam a pretensão de responder em juízo, através de seu patrimônio pessoal, por débitos originariamente das empresas que integram ou integravam. Institucionaliza-se ou complementa-se o regramento processual para a tutela do direito material pronunciado pelo artigo 50 do Código Civil[1].
Em princípio, sendo o Código de Processo Civil o normativo processual geral do ordenamento, sua incidência recai sobre toda a espécie de direito material em disputa, e isso, obviamente, se aplica ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Já é assente, por exemplo, que o instituto sistematizará situação, não raro presente na Justiça do Trabalho, em que se materializa o chamado “redirecionamento” das execuções trabalhistas, notadamente quando estas se afiguram infrutíferas contra as empresas devedoras, autorizando-se, de modo subsidiário, o atingimento de bens materiais dos respectivos sócios.
A despeito disso, a existência de normas processuais específicas, que tutelem determinados tipos de bens materiais, tem o condão de obstar a aplicação do instituto previsto na lei geral, demonstrando-se eventual incompatibilidade. O princípio da especialidade atrai a incidência da norma específica, aplicando-se a norma geral subsidiariamente e apenas se não houver conflito.
É exatamente com base nessa premissa fundamental que se aponta absoluta incompatibilidade entre o procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC de 2015 e o processo de execução fiscal, regido pela Lei 6.830/80.
Afirma-se, pois, que não se faz (ou fará) possível valer-se das normas instituídas pelo artigo 133 e seguintes do novo Código de Processo Civil para regrar o processamento de inclusão de sócios gerentes no polo passivo de execuções fiscais, em razão da responsabilidade tributária prevista pelo artigo 135 do CTN.
De início, há duas questões, vinculadas ao mecanismo processual em foco, que ilidem a sua conformidade com a execução fiscal. Ambas se relacionam (e se incompatibilizam) com a necessidade de garantia da execução prevista na LEF, que condiciona ou direciona todo o seu procedimento.
A primeira delas diz respeito à previsão, estampada no artigo 134, parágrafo 3º do novo CPC, de que o aludido incidente suspenderá o curso do processo. Ocorre que a suspensão da prática dos atos executivos, na execução fiscal, só deve ocorrer, como regra e para o que aqui interessa, depois de “seguro o juízo”, pela penhora, depósito, seguro garantia ou fiança bancária. Note-se que o executado é citado para “pagar ou garantir a execução”.
A lógica da execução fiscal é toda voltada à proteção do crédito público. O exercício do contraditório e ampla defesa, através dos embargos à execução, pressupõe garantia da execução, sob pena de inadmissibilidade da defesa. É a dicção do artigo 16, parágrafo 1º, da Lei 6.830/80, consignando que “não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução”.
Anote-se, também, que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não se configura hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, razão pela qual não suspende a prescrição tributária. Ou seja, teríamos uma hipótese de suspensão da execução fiscal sem a correlata suspensão do fluxo do prazo prescricional para a cobrança do crédito. Lembre-se que casos de suspensão da prescrição tributária dependem de previsão em lei complementar, nos termos do artigo 146, III, “b”, da Constituição Federal.
Já outro aspecto, atrelado ao primeiro, concerne na contemplação, insculpida nos artigos 135 e 136 do Código de Processo de Civil de 2015, de instrução probatória no incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Ora, assim como a suspensão do processo, a dilação probatória na execução fiscal está condicionada à “garantia do juízo”, vez que a única possibilidade de produção ampla de provas no procedimento regido pela Lei 6.830/80 se dá nos embargos à execução. O artigo 16, parágrafo 2º, da Lei 6.830/80 preceitua que “no prazo dos embargos, o executado deverá alegar toda matéria útil à defesa, requerer provas e juntar aos autos os documentos e rol de testemunhas, até três, ou, a critério do juiz, até o dobro desse limite.”.
Exatamente nessa perspectiva é que não se pode invocar a exceção de pré-executividade, enquanto mecanismo de defesa admissível na execução fiscal pela doutrina e jurisprudência, para justificar a aplicação do incidente de desconsideração no indigitado procedimento especial. Isto porque a exceção de pré-executividade tem hipótese de cabimento restrito a “matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória”, conforme Súmula 393 do STJ. Já o incidente de desconsideração permite irrestrita produção de provas.
Em última análise, o manejo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito da execução fiscal, traria a vantagem ao executado de afastar, ao mesmo tempo, as condicionantes para oposição dos embargos à execução – garantia da execução – e para propositura da exceção de pré-executividade – matérias que não dependam de dilação probatória. Fere-se, com isso, toda a lógica sistêmica da Lei 6.830/80.
Por outro lado, no específico caso de inclusão de sócios gerentes no pOlo passivo de execuções fiscais com base na Súmula 435 do STJ[2], deve-se consignar que há uma presunção de dissolução irregular, constatada na execução fiscal por oficial de justiça dotado de fé pública, germinando uma nítida verossimilhança de sujeição passiva tributária. Aliada à urgência ínsita a qualquer procedimento executivo, tem-se a autorização para a dilação do contraditório, fruível em momento posterior à ampliação subjetiva da demanda. Verossimilhança de alegações e risco de ineficácia do provimento final excepcionam o princípio do contraditório, disto também resultando a incompatibilidade do incidente de desconsideração com as hipóteses de “redirecionamento” das execuções fiscais estribadas na citada Súmula 435 do STJ.
É importante frisar que, no tema em foco, começam a surgir as primeiras manifestações no âmbito do Judiciário, indicativas do que pode se tornar uma futura jurisprudência. Nessa diretriz, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) já aprovou o Enunciado de número 53, proclamando que “o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015”.
Convém, ainda, mencionar entendimento de que a responsabilidade tributária dos sócios, prevista pelo artigo 135 do CTN, por ser subjetiva, pessoal e direta, não configura caso de desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, o Fórum de Execuções Fiscais da Segunda Região (Forexec), edição 2015, reunindo juízes federais atuantes nas varas federais especializadas em execuções fiscais, aprovou o Enunciado de número 6, dispondo que “a responsabilidade tributária regulada no artigo 135 do CTN não constitui hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, não se submetendo ao incidente previsto no artigo 133 do CPC/2015”.
Não obstante o vanguardismo que tangencia o novo Código de Processo Civil, erigindo inúmeros instrumentos tendentes a modernizar o nosso sistema processual, cabe interpretá-lo com parcimônia e razoabilidade, em conjunto com as demais normas processuais integrantes do ordenamento jurídico. Espera-se que, acatando as primeiras orientações que se descortinam, a jurisprudência e doutrina pátrias afastem a aplicação, em sede de execução fiscal, do procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica previsto no artigo 133 e seguintes do novo CPC.
[1] “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
[2] Súmula 435. Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente
(*) Ricardo de Lima Souza Queiroz é procurador da Fazenda Nacional.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 8 de fevereiro de 2016, 7h30